segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A arte das “Garatujas”



Ao ler o primeiro capítulo do livro de história da arte de E.H. Gombrich, que trata da arte pré-histórica, não pude deixar de perceber uma relação intertextual com o que diz Scott McLoud (em Desvendando os Quadrinhos) a respeito da diferença entre o desenho de estilo Cartum e o desenho realista.

Gombrich discorre sobre a visão preconceituosa que o ser humano ocidental “civilizado” tem sobre o fazer artístico dos povos “primitivos”. Uma falácia comum desse pensamento preconcebido é a de que as obras de arte primitivas carecem de rigor e qualidade técnica, e que essa arte antiga se encontra em estágio evolutivo inferior em relação à arte de nossos tempos. O autor logo desmente esta afirmação ao nos trazer exemplos de cerâmicas e trabalhos com metais, de povos primitivos, de um acabamento e técnica tão acurados que qualquer artista contemporâneo teria dificuldade em reproduzir, mesmo fazendo uso das ferramentas de que dispomos hoje. O autor também nos lembra que em seu tempo o artista primitivo possuía as mais rudimentares ferramentas de trabalho, e mesmo assim conseguia atingir níveis técnicos elevadíssimos. Como se sustenta então esse juízo de que a arte primitiva é uma arte inferior? Este juízo de valor não se baseia apenas na comparação das ferramentas, materiais e técnicas dos artistas primitivos com os posteriores, mas também na crítica à suposta falta de naturalismo das peças encontradas em escavações, que trazem figuras meramente bidimensionais e esquemáticas, “garatujas tais quais as das crianças”. Gombrich nos mostra exemplos de obras em bronze e barro (duas cabeças, uma do México e outra da África) que apresentam figuras antropomórficas com um grau de naturalismo impressionante.

Já que nem a técnica nem o naturalismo são critérios sustentáveis da crítica à arte da pré-história, e já que “(...) a história da arte não é, em seu todo, uma história de progresso na proficiência técnica”, como diz Gombrich, qual seria o critério que diferencia (esqueçamos os juízos de valor) esse fazer artístico primitivo dos posteriores, ou até, que diferencia todas as obras de arte de todos os tempos desde então? Essa diferença se encontraria não no universo palpável e representacional que envolve a obra de arte, mas no universo interno e imaterial de cada povo.

Gombrich completa sua afirmação dizendo que a história da arte é uma “história de idéias, concepções e necessidades em constante evolução”(fica aqui uma crítica quanto ao uso da palavra evolução: talvez fosse mais adequada a palavra mudança). Se a arte não evolui, mas apenas muda de acordo com o contexto histórico, social e cultural, não nos cabe mais expressar juízos valorativos ao compararmos obras de arte de diferentes tempos. Um caminho mais interessante seria o de buscar nessa comparação os elementos simbólicos, ideológicos, psicológicos, ou seja, os elementos imateriais que diferenciam as concepções de arte ao longo da história.

Voltando para o nosso homem primitivo, encontraremos nele uma concepção sobre sua arte, diferente da concepção que tem o indivíduo ocidental civilizado. Na pré-história a arte não possui valor em si mesma, ou na simples contemplação estética. A arte pré-histórica está sempre ligada a uma finalidade utilitária ou mágica. As imagens, para o homem primitivo, são donas de um poder mágico capaz de espantar maus espíritos, curar doenças, trazer chuva etc. Alem disso, elas trazem identidade (não mera decoração) a objetos de uso diário ou ritualístico, como ferramentas, armas de caça, jarros d’água etc. Os povos primitivos geralmente cultuavam animais como deuses ou como elementos identitários de uma tribo ou clã. Esses animais eram representados em obras de arte, raramente de forma naturalista. Na concepção de arte dos povos primitivos a representação do mundo estava mais ligada a valores simbólicos do que a beleza natural. Assim, para fazer o totem do deus Águia, uma simples peça de madeira com a forma do bico do animal já seria o suficiente, sem haver necessidade de representar a águia real tal qual ela é. Mais uma vez Gombrich nos traz um exemplo da diferente concepção dos povos primitivos em relação à arte, mostrando uma representação de Oro, Deus da Guerra do Taiti. Trata-se de um pedaço de madeira coberto por um trançado vegetal. Na parte superior da peça vemos dois círculos trançados que representam os olhos do deus, e abaixo duas linhas sinuosas verticais que representam os braços. Uma configuração extremamente simples no que diz respeito ao realismo.

No capítulo de seu livro em que examia o estilo de desenho Cartum em relação ao desenho realista, Scott McLoud discorre sobre a maneira como a simplificação representacional do Cartum está ligada a conceitos universais de apreensão do mundo por nós, seres humanos. Ele explica que todos nós temos na mente idéias abstratas sobre nós mesmos e sobre o mundo. Além das informações visuais externas que chegam a nossa retina o tempo todo, existe todo um mundo de representações simplificadas (abstratas) que povoam nossa mente e nos ajudam a interagir com a realidade. Como exemplo ele cita uma conversa entre duas pessoas: cada uma delas, além de receber pelos olhos uma imagem da pessoa a sua frente, rica em detalhes, também conserva durante a conversa uma imagem mental de si própria; essa imagem mental é simplificada, pois para formá-la usamos apenas a imaginação, suposições de como achamos que os nossos olhos, a nossa boca, o nosso nariz, se parecem quando estamos rindo, chorando, falando, quando estamos sérios ou paquerando; estas formas abstratas carregam um pouco da nossa identidade, pois nelas nos vemos como somos ou como gostaríamos de ser. Essa imagem mental não estaria reservada apenas ao rosto, mas também nos mostra como nosso corpo inteiro se comporta sem termos que necessariamente olhar para ele. Assim, o estilo Cartum, que se baseia na simplificação de linhas e formas, estaria mais ligado a essa imagem mental que temos de nós mesmos, e assim causaria mais identidade do que um desenho realista. O autor diz ainda que tudo o que vivenciamos pode ser separado em dois reinos: o conceitual e o sensorial. “Nossas identidades pertencem ao mundo conceitual. Não podem ser vistas, ouvidas, cheiradas, tocadas ou saboreadas. São apenas idéias, e tudo o mais, desde o início, pertence ao mundo sensorial, o mundo externo a nós”. Desta forma o Cartum estaria ligado ao mundo conceitual, por estar mais próximo das imagens que fazemos de nós mesmos e das coisas. Assim, um desenho simplificado como um Cartum pode expressar todo um universo de significações que varia de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo. A arte realista, ao contrário, é muito específica, pois ela encerra a imagem naquilo que o mundo sensorial nos oferece, sem ter muita relação com o mundo da nossa identidade individual e coletiva. Diz Scott McLoud: “Ao reduzir uma imagem ao seu significado essencial, um artista pode ampliar esse significado de uma forma impossível para a arte realista”. É dessa forma que um bico esculpido num pedaço de madeira pode remeter não a uma ave de rapina, mas a um deus ou a uma tribo, como uma representação da identidade daquele povo. Talvez pelo mesmo motivo um pedaço de madeira com dois minúsculos círculos de palha possa ser reconhecido e venerado como a imagem do Deus Oros, o Deus da Guerra, muito mais do que a representação naturalista de um ser humano. E isso, claro, não é questão de melhor nem pior, de bom ou ruim, mas, como disse Gombrich, é uma questão de diferentes concepções sobre o mundo e sobre a arte. Na Grécia antiga, por exemplo, os deuses eram representados como homens, de forma bem realista. E isso tem a ver com a própria mitologia grega, onde os deuses se assemelhavam ao homem, concepção bem diferente do místico distanciamento que o homem primitivo tinha de seus deuses.

Enquanto para nós a arte pode ser vista como bela em si mesma, como um fazer de finalidade estritamente estética, para o homem primitivo a imagem é capaz de dar vida e trazer poder a objetos inanimados, de representar o mundo a sua volta de acordo com o imaginário coletivo da tribo, muitas vezes com o poder de se tornar tão real quanto o objeto/ser da representação. Assim, me arrisco em dizer que há algo de comum entre o Cartum e a arte do homem pré-histórico. Ambos nos dão o poder mágico de representar o mundo não simplesmente como ele é, mas como nós o entendemos ou queremos que ele seja. Portanto não nos cabe criticar a arte primitiva como o adulto que critica as “garatujas” das crianças, ou como o artista plástico contemporâneo que critica a simplicidade “infantil” dos desenhos animados ou das histórias em quadrinhos, mas antes, saber que o conceito de arte não pode ser único e atemporal, e que a arte das “garatujas” não pode mais sofrer a repressão das outras concepções de arte.



Autor: Raoni Xavier



Fontes:



GOMBRICH, E.H. A História da Arte. LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora, 16ºEd. 1999.


MCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Editora M. Books, São Paulo, 2005

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