quarta-feira, 24 de outubro de 2007

UMA ARTE DE RACIOCINAR

Hermes Renato Hildebrand

O registro do pensamento, em algum tipo de imagem, sobre algum tipo de suporte, vem sendo realizado desde o homem pré-histórico. Junto com estas formas de representação encontra-se a necessidade de determinar parâmetros para realizá-las. São conhecidas as imagens dos touros gravadas nas pedras da caverna de Lascaux, na França, com 5 metros de comprimento. E, parece fácil compreender que, para realizá-las, foi necessário um conhecimento técnico e um procedimento lógico-matemático espacial a fim de conceber representações tão grandes, obedecendo as suas devidas proporções. Para utilizar óxido mineral, ossos carbonizados, carvão vegetal e o sangue dos animais abatidos na caça com a intenção de representar imagens nas pedras, o homem necessitou planejar esta tarefa, assim como, também planejou a forma lógica de representar suas primeiras imagens.

A modelagem lógica das imagens dos touros exigiu conhecimento topológico de representação que, de algum modo, capturava os animais. Ou era de forma imagética para fixar suas representações em desenhos, ou era de forma xamânica, mística ou religiosa para dominar os animais, facilitando sua caça (Sogabe 1996: 59-64). No início, acreditavasse que as imagens eram produzidas para delinear as ações do dia a dia. Desde os primeiros registros as imagens já possuíam, entre outras, a característica de serem científicas. Além de estabelecerem as formas de nossos modelos de representação, através de regras de proporcionalidade, também serviam para contabilizar as pessoas, os animais e as coisas do cotidiano. Assim, o homem se mostrava científico desde a pré-história. Primeiro rudimentarmente com seus registros nas pedras e depois, com representações mais detalhadas das imagens das plantas, da anatomia humana e animal, atribuindo a característica de ser um registro do olhar, isto é, a imagem é semelhante ao olhar (Sogabe 1996). Inicialmente, as imagens e as estruturas geométricas que organizavam as nossas representações em desenhos e pinturas, eram executadas somente com técnicas artesanais e manuais.

“Os estudos preparatórios dos elementos utilizados em suas pinturas [Leonardo da Vinci], como os das pesquisas de plantas para ‘Leda and the Swan’ (Meyer, 1989), foram os resultados de uma observação apurada da natureza e de um registro preciso das plantas, nos mínimos detalhes. Esses registros, buscando uma fidelidade maior com o real, iniciam também a necessidade de um olhar mais minucioso sobre a natureza revelando, em conseqüência, novos conhecimentos” (Sogabe 1996: 62).



É trivial deduzir que as imagens encontradas desde a pré-história até recentemente, passando pelos egípcios, babilônios e gregos, possuem características topológicas e a capacidade de representar quantidades, mensurar proporções ou, até de, simplesmente, identificar padrões de repetição estilizados nas formas que apresentam. No Parque Nacional da Serra da Capivara, no Brasil, encontramos grafismos rupestres que nos possibilitam constatar que as imagens produzidas pelo homem pré-histórico, no sítio arqueológico de São Raimundo Nonato, no Piauí, contêm elementos que permitem inferir sobre relações de dimensionalidade, proporcionalidade e espacialidade das imagens. Os animais e seres humanos representados, mesmo aqueles mais estilizados, possuem proporções facilmente identificáveis nos traços, que mostram a intenção em quantificar e mensurar as figuras humanas e animais em suas representações.

A partir da pesquisa de Niède Guidon (1991), as representações rupestres existentes no Parque Nacional Serra da Capivara estão cronologicamente distribuídas em: Tradição Nordeste (12.000-6.000 anos BF - Before Present), Agreste (6.000-4.000 anos BP) e Geométrica (5.000-4.000 anos BP) e duas de gravuras: Itacoatiaras do Leste e Itacoatiaras do Oeste (Guidon 1991). Nas representações da Tradição Geométrica, caracterizadas por uma predominância de grafismos topológicos, que, para nós ocidentais, representam formas e figuras geométricas, como círculos, triângulos e retângulos, vamos encontrar uma tendência à “geometrização” e um grafismo abstrato e topológico.



Estas representações “geométricas” carregam, em si, uma grande variedade de possibilidades interpretativas, por isso, hoje são vistas com muito cuidado em relação ao que significam. Estas características à “geometrização” também podem ser encontradas nas representações da Tradição Nordeste e Agreste neste sítio arqueológico. Porém, num estudo mais detalhado sobre elas, realizado por Martin (1997), vamos encontrar, associados a estes grafismos “geométricos”, relações espaço-corporais, sistemas de contagem, relações com os corpos celestes e com os calendários lunares. A representação em perspectiva aparece, na história do homem, somente com os Egípcios, Babilônios, Gregos e Etruscos, e os resultados gráficos são soluções que ressalta a tridimensionalidade das formas (Pessis 1987: 68). Em certas composições das representações
rupestres da Tradição Nordeste, a relação sexual que é representada
Figura 1_2 - Pintura Rupestre - Cena de Sexo – Toca do Caldeirão do
Rodrigues I. 8000 – 7000 a.C., Piauí, Brasil. In Peintures préhistoriques
du Brésil, de Nièd Guidon, Hérissey – Érreux, France,1991, p.59.
mostra parceiros que recebem o mesmo tratamento no espaço topológico gráfico. A composição é feita segundo um ponto de vista que expõem a identidade sexual dos dois atores e sua relação sexual. As rochas que são os suportes destas pinturas mostram que as figuras humanas são desenhadas como se estivessem na superfície do solo, na qual as duas pessoas interagem sexualmente.

“O estudo dos grafismos de ação da Tradição Nordeste permite constatar que, segundo as modalidades estilísticas, os autores recorrem às diversas soluções para estabelecer as relações de profundidade entre os elementos da composição pictural. Vemos várias formas de tratamento do espaço e da representação de profundidade entre os componentes do agenciamento pictural. Um destes procedimentos consiste na superposição de diferentes planos paralelos horizontais aos quais são dispostos componentes de uma representação, de tal sorte que parece achatado sobre o plano bidimensional, a percepção da profundidade exige do observador um ato imaginário de destacamento da figura. A partir desta operação de base, os procedimentos utilizam os recursos de obliqüidade que contribuem para produzir uma verdadeira percepção de profundidade, pois significa um crescendo e decrescendo, do momento que é visto, como um desvio ou aproximação gradual da posição estável da verticalidade e horizontalidade” (Pessis 1987: 69).

Nestas formas de representação gráfica podemos constatar claramente as estruturas lógico-matemáticas de caráter topológico que são necessárias para elaborar estes desenhos. Apesar delas serem realizadas sobre as pedras, que são suportes tridimensionais, podemos vê-las como representações bidimensionais que, facilmente, seriam realizadas em folhas de papel. Elas exigem uma concepção do espaço topológico que, certamente, tem dimensionalidade e proporcionalidade. Nessa figura acima podemos ver uma das mais belas representações com imagens de homens, animais e muitas formas repetidas, mostrando as noções topológicas nas quais podemos identificar a espacialidade corporal e sistemas de contagem e quantificação.



Os chapéus côncavos foram realizados pelos índios Makan e outros povos Nootka, e os convexos pelos Tlingit, Haida e Kwakiutl. Nas imagens extraídas do livro “O poder dos limites: harmonia e proporções na natureza, arte e arquitetura” (Doczi 1990: 14), verificamos que os índios americanos, ao elaborarem suas cestas, utensílios domésticos e vestimentas, fundamentam seus modelos topológicos de representação no ato da elaboração de seus objetos de uso diário. Suas imagens são produzidas na construção dos objetos de palha e nas imagens colocadas sobre eles.



A grande maioria dos padrões de fitas dos “sipatsi” é produzida baseando-se nas relações simétrica possíveis nas tecelagens. são vários os padrões de tecelagem elaborados pelos moçambicanos, porém, as tramas respeitam um padrão de simetria definida no plano bidimensional e suas possibilidades de execução limitada pela necessidade de trançar.

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